Não é muita novidade para ninguém minha preferência pelo sistema de criação de itens mágicos do AD&D em relação a sistemas mais simples e mecânicos como o apresentado no D&D 3ªed. Não é apenas uma questão de “simplicidade” ou “equilíbrio de jogo”, mas sim uma questão de “clima”. O sistema do AD&D adiciona um toque de misticismo ao processo de construir objetos mágicos.
O exemplo máximo de como criar esse clima de misticismo talvez esteja na descrição que Gary Gygax dá do processo de criação de pergaminhos mágicos no Dungeon Master Guide do AD&D 1ªed. Como possivelmente nem todos os que leem este blog tenham tido a oportunidade de ler essa descrição (seja por nunca terem posto os olhos no livro original, seja por não entenderem inglês), tomo a liberdade de reproduzir abaixo o referido texto, numa tradução livre:
“Um pergaminho mágico deve ser escrito somente em papiro, pergaminho ou velino limpos e perfeitos – sendo o último o mais desejável. Qualquer erro resultará em esforço desperdiçado. O material sobre o qual o pergaminho será escrito altera a chance de sucesso da construção do item:
papiro +5% chance de falha
pergaminho +0% chance de falha
velino -5% chance de falha
Uma pena nova e virgem deve ser usada para cada magia transcrita. A pena deve ser de uma criatura de natureza magica ou estranha, i.e. um grifo, harpia, hipogrifo, pegaso, roca, qualquer tipo de esfinge, e monstros similares que o mestre deseje incluir (demônios, diabos, lammasu, etc.).
A tinta usada é um requisito muito especial. A tinta de pergaminhos mágicos, assim como a tinta utilizada para detalhar magias em grimórios, é produzida pelo próprio escritor a partir de ingredientes estranhos e secretos. A base da tinta pode ser sépia de uma lula gigante ou polvo gigante. A esse liquido pode ser adicionado sangue, gemas moídas, infusões de ervas e especiarias, tinturas feitas a partir de partes de monstros, e assim por diante. Um exemplo de fórmula de tinta necessária para escrever um pergaminho de proteção contra petrificação pode ser o seguinte:
1 oz. de sépia de lula gigante
1 olho de basilisco
3 penas de cocatrice
1 mL de veneno de serpente da cabeça de uma medusa
1 peridoto grande, moído
1 topázio médio, moído
7 mL água benta
6 sementes de abóbora
Colha a abóbora na lua nova e seque as sementes sobre um fogo brando de lenha de madeira de sândalo e esterco de cavalo. Selecione três sementes perfeitas e as moa com casca e tudo, formando uma farinha grossa. Ferva o olho de basilisco e as penas de cocatrice por exatos 5 minutos em uma solução salina, coe e coloque o líquido em um jarro. Adicione o veneno de serpente de medusa e o pó das gemas.
Deixe descansar por 24 horas, mexendo ocasionalmente. Despeje o liquido em uma garrafa, adicione sépia e água benta, misture os componentes com um bastão de prata, mexendo em sentido anti-horário. Essa receita produz tinta suficiente para um pergaminho.
Outras formulas de tinta devem ser criadas pelo DM. Ingredientes devem se encaixar no propósito geral da tinta. É recomendado que cada magia diferente a ser transcrita requira uma mistura de tinta diferente – magias clericais requerendo materiais mais venerados e sagrados, magias de druida necessitando basicamente infusões de ervas e raízes raras, e assim por diante.
Uma vez que o material, a pena e a tinta estejam prontos, o criador deve escrever as runas, glifos, símbolos, caracteres, pictogramas, e palavras mágicas na superfície do pergaminho. A transcrição deve ser feitas de seu grimório ou sobre um altar (para clérigos e druidas). Velas e incenso especiais devem ser queimados enquanto a inscrição é feita. Clérigos devem ter orado e realizado sacrifícios especiais para sua divindade, enquanto magos devem traçar um círculo mágico e permanecer concentrados.”
Essa receita de pergaminho, para mim, evoca exatamente o que deve ser o processo de criação de itens mágicos: um processo minucioso, cheio de ingredientes bizarros e procedimentos exóticos. Tudo bem que eu acho que três componentes especiais difíceis de se conseguir (penas de cocatrice, olho de basilisco e veneno de medusa) talvez seja um pouco de exagero, mas notem como todos esses elementos fazem menção à finalidade do item sendo criado (um pergaminho de proteção contra petrificação).
Interessante notar também que no texto original Gary Gygax utiliza-se de duas unidades de medidas arcaicas, “dram” e “scruple” (que eu converti para mililitros na tradução), pertencentes ao antigo Sistema Apotecário de medidas, o que só aumenta o clima de alquimia medieval.
E a verdade é que, mesmo se utilizando de um sistema mais simples para definir o sucesso ou fracasso da criação de itens mágicos, não há razão para que o processo seja mecânico e sem graça, pois é totalmente possível utilizar esse elemento climático em conjunto, bastando que o mestre inclua a necessidade de alguns componentes e a realização de certo ritual.
Então, aqueles que não desistiram das edições mais recentes do D&D, mas desejam um clima mais Old School em seus jogos, tentem isso na próxima vez que seus jogadores decidirem sair por aí fazendo ítens mágicos!